Como gerenciar o ambiente fabril entre máquinas, pessoas e a tão falada transformação digital
O ambiente fabril, seja qual for o segmento da indústria, é mais ou menos o mesmo: máquinas pesadas, empilhadeiras, armazéns, métodos, padrões, critérios rigorosos de segurança e qualidade, tablets e celulares chegando aos poucos para dar uma pitada de adrenalina. E no meio de tudo isso, os seres humanos que ali trabalham e fazem a sua rotina. É sobre eles que falaremos hoje e como liderar em um ambiente que foge – e muito – do dia a dia do escritório.
O termo “chão de fábrica” (ou shopfloor) surgiu quase ao mesmo tempo em que a própria indústria, lá na revolução industrial. É o termo que se refere ao local da operação, às linhas de produção, onde entra o insumo e sai o produto direto para a venda. Lá estão as máquinas e empilhadeiras, não há sofás floridos ou videogames – muito menos frigobar.
Nem sempre é um ambiente confortável de se estar, às vezes com bastante barulho e calor, e a cada segundo de um equipamento parado significa recurso sendo perdido. Em resumo, é um lugar tenso e que trava uma batalha diária contra o tempo...
Somado a isso, o “novo tempero” para essa tensão chegou após 2010, com a avalanche de tecnologias da indústria 4.0. O que antes era feito no papel passou a ser feito no tablet ou no celular. Parece ótimo, mas nem sempre o é. Com os novos gadgets nas linhas, o estresse aumentou e a produtividade não apresentou ganhos significativos inicialmente, como anuncia o report de 2017 da Deloitte sobre produtividade no trabalho versus crescimento de tecnologias no mesmo período.
Ou seja, o ambiente, que já era desgastante, acabou se tornando ainda mais. A máquina quebrou? Mande WhatsApp para o técnico vir correndo, se possível, na mesma velocidade da mensagem. Ou então, você está na rotina da operação, seu celular vibra e lá vem a mensagem: “já fez o relatório?” Essa é uma rotina cansativa não só física, devido às atividades em si, mas também mentalmente.
Digitalização da fábrica
Foi com essa percepção que, em 2018, as cervejarias Heineken iniciaram um movimento de digitalização do processo fabril, a fim de reduzir toda essa carga de trabalho, unificar plataformas (evitando fontes de informação variadas que geram inúmeros pop-ups por minuto) e, claro, melhorar a nossa eficiência.
Como responsável pela implantação do projeto digital na quinta maior cervejaria do grupo no mundo em volume produzido, aprendi algumas lições sobre pessoas e sobre o mundo digital que gostaria de compartilhar:
O Gemba
No pós-Segunda Guerra Mundial, quando as metodologias de gestão japonesas, como o lean e o TPM (total production maintenance, que posteriormente se tornou total production management), começaram a surgir nas montadoras, o termo “gemba” foi originado. Entendido como “o verdadeiro local” em japonês, o gemba refere-se ao local de produção. Portanto, “ir ao gemba” é a ação de ir até o chão de fábrica.
Vamos esclarecer: trabalhadores das áreas administrativas, que não faziam parte da linha de produção, eram incentivados a visitar onde o “negócio” acontecia, isto é, eles deveriam ouvir a operação e entender a real situação do que ali acontece, seja pra entender a causa de um problema ou para agregar com algo que melhorasse o dia a dia dos colaboradores no “shopfloor”.
Logo, o gemba seria um local rico para se obter soluções valiosas a problemas de fabricação – podemos até chamá-lo de “o avô da UX” e da compreensão da necessidade das pessoas.
Acima de tudo, o gemba nos ensina uma lição valiosa: ter a empatia necessária praticando a escuta ativa. Entender a cultura (foco nessa palavra!) e a rotina das pessoas que ali estão diariamente é fundamental para implantar todo e qualquer projeto. Sem essa compreensão humana, real e profunda, as chances de falhar são imensas.
A tecnologia é sexy
Eu fico imaginando a pessoa que inventou o papiro, lá no Egito antigo, como ela convenceu as pessoas que, a partir de um determinado momento, era preciso registrar tudo com a escrita.
“Para quê? É muito mais fácil falar”, devem ter dito. A resistência à implantação digital, ao novo, é imensa. Toda mudança gera incômodo, porém, a tecnologia tem um aliado, pois ela leva a nossa imaginação do Egito antigo aos Jetsons, é extremamente atraente por aflorar nosso “Star-Wars interior” e desperta a curiosidade, por isso, a use a seu favor. Ao invés de impor, mostre o mundo de possibilidades que aquela tecnologia soluciona.
Explique o porquê
Como diria Simon Sinek no livro Starts with why (sou fã desse livro, fica aqui a minha recomendação), é necessário dar significado às coisas e atividades, assim, a clareza do que se faz e o grau de maturidade para analisar uma situação são muito maiores. Dar um celular ou tablet para uma pessoa e dizer que aquela é sua nova ferramenta de trabalho, não traz sentido e não surtirá efeito. Mostrar de onde vem, para onde que vai e o que a tecnologia agrega, por sua vez, aumenta muito a chance de sucesso da implementação.
Valorize as pessoas que compram a sua ideia
Tendemos a gastar muita energia com as pessoas que não foram convencidas com o novo projeto.
Aprendi que gastar mais tempo com elas do que com aquelas que estão empolgadas é um erro mortal. Além de não as convencer, você também perde a empolgação dos que estão contigo, uma energia que não pode ser desperdiçada em grandes implantações. Aqueles que apresentam resistência extrema, mantenha-os no radar; valorize os que estão iniciando o movimento com você! São eles que, quase em um efeito manada, trarão mais pessoas para seu lado.
A partir do momento que o meu grupo de aliados cresceu, a implantação da solução digital foi orgânica. A aceitação foi tão exponencial quanto a própria tecnologia, em apenas oito semanas já tínhamos 100% da cervejaria coberta pelo aplicativo e mais de 500 desvios de rotina registrados pela plataforma por parte da operação no mesmo período. Assim sendo, o reconhecimento de quem está na mesma vibração que você é muito importante na conquista de novos parceiros e fundamental para a expansão do projeto.
Não importa quão digital sejamos, quão “quatro ponto alguma coisa” a indústria seja ou quão tecnológico seu processo for, se não entendermos profundamente a cultura e ouvir as pessoas que fazem isso acontecer, dificilmente sua estratégia de implantação será seguida. É muito mais sobre pessoas do que linhas de código de fato. E como diria o já citado Simon Sinek: “100% dos clientes são pessoas, 100% dos funcionários são pessoas. Se você não entende de pessoas, não entende de negócios”.
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